terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Grandes poderes e nenhuma responsabilidade




Nos dias que se seguiram, Lázaro passou a encarar seus sonhos de outra forma. Era como se quando sonhasse estivesse plenamente consciente em seu universo onírico; e quando estava acordado parecia viver num estranho torpor. As pessoas, as coisas, as cores, tudo era mais vivo no sonho de Lázaro.

E foi nos sonhos alheios que Lázaro percebeu a "utilidade" de suas novas habilidades. Após muitos dias de concentração e de fracassos, ele conseguiu entrar nos sonhos de Dona Regina, sua patroa. Na mente dela, Lázaro percebeu o quanto era desprezado e ignorado no ambiente de trabalho. Para chamar a atenção de Dona Regina - que vivia nos seus meticulosos afazares subconscientes -, Lázaro precisou transformar-se num imenso gigante, cujas mãos esmagavam tudo o que distraia sua patroa. Pegou ela na ponta de seus imensos dedos, e disse palavras de ordem. Primeiramente exigiu um salário melhor, o que veio a se concretizar num aumento coletivo de salários na empresa. Depois, tentando ser mais valorizado, exigiu vantagens específicas para si, como subir na empresa e trabalhar menos. Como resultado, ganhou uma sala exclusiva no prédio, com direito a ar condicionado, vista panorâmica e uma máquina de café expresso de última geração.

Lázaro passou a ser o chefe do setor administrativo, cargo antes ocupado por Regina - que em vinte anos de empresa, nunca teve tais regalias. Ela, a propósito, passou a ser sua secretaria por algum tempo. Mas semanas depois, foi transferida para outro setor, e Lázaro pode escolher uma bela e jovem secretária para lhe passar o café e as ligações. Quanto às responsabilidades do cargo, deixava para Dona Regina, que após seu próprio expediente, subia para a sala de Lázaro e colocava tudo em dia.

No começo, Lázaro passava longos períodos olhando pela janela, enquanto pensava nas palavras daquele velho que vivia no jardim. Pensou em retornar para visitá-lo algum dia. Mas o tempo foi passando, e a imagem do velho foi ficando cada vez mais vaga e imprecisa. As frases profundas do sábio lentamente se perdiam no mundo mundano e estéril em que vivia o rapaz. No entanto, mal sabia ele que novas surpresas o esperavam.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O velho e o jardim

Era um antigo prédio da cidade. Antigo, mas alto o suficiente para se destacar entre as construções do centro velho. Suas janelas opacas e suas varandas quadradas lembravam do tempo em que lá se faziam importantes negócios. Embora aparentemente abandonado, era esse o endereço indicado por Sérgio.

Quando abriu a portinhola que dava acesso ao terraço do prédio, Lázaro se deparou com um imenso e esplendoroso jardim. Dezenas de variedades de plantas tropicais enchiam de cor e vida o topo do antigo edifício.

Ao fundo, o jovem pode ver um senhor de barbas brancas, chapéu e roupas rústicas cuidando do precioso jardim. Com uma certa lentidão, Lázaro venceu os galhos e arbusto, podendo se aproximar do velho após alguns instantes.

- Há muito esperava por você, meu jovem.

Lázaro não conseguia esboçar qualquer reação, aquele velho de rosto fustigado pelo sol era-lhe estranhamente familiar. Era como se conhecesse o velho em alguma outra ocasião. Toda aquela situação dava ao rapaz uma sensação de torpor.

- Lázaro, você foi despertado no acidente que sofreu. Embora tenha sofrido muito, agora pode enxergar a verdade. Você agora pode manipular o que se vê e o que se sente.

Continuou o velho:

- Isso é muito bom para você. Mas saiba que chegará um dia em que passado será futuro e que a justiça estará contra o amor. E nesse dia você lembrará da tristeza da existência.

Após dizer tais coisas, o velho voltou-se a uma pequena planta, concentrando-se no lento trabalho de retirar dela todas as ervas daninhas.

- Mas como assim? O que eu devo fazer?

Sem retirar os olhos da planta, o velho respondeu:

- Lembra dos seus sonhos..? Pois então, neles você pode viajar livremente, assim como pode chegar nos sonhos alheios. Quando se der conta, estará você no meio de todos os sonhos da coletividade. Esse é um dom que trará grandes mudanças em sua vida.

- Qual é o nome do senhor? - perguntou Lázaro.

- Por hora, basta o que eu lhe disse. Vá, e experimente suas novas habilidades.

Após dizer isso, o velho oráculo não lhe deu mais atenção. Com isso Lázaro pensou haver somente duas hipóteses: ou o velho compartilhava de sua loucura, ou tudo isso que o velho falou estava realmente acontecendo.

sábado, 10 de julho de 2010

Estamos com problemas técnicos, voltaremos a operar em instantes

Munido do endereço dado por Sérgio, Lázaro foi ao consultório do tal vidente. Era no centro da cidade, assim Lázaro teve que pegar o metrô. Havia muito movimento na estação, ele avançava lentamente em meio a multidão que se aglomerava na fila de embarque.

De repente saiu dos auto falantes a seguinte mensagem: “Estamos com problemas técnicos, voltaremos a operar em instantes”. A multidão suspirou e resmungou coletivamente. Para Lázaro, não era nada muito problemático. Era seu dia de folga, e tinha ele todo o tempo do mundo para chegar ao consultório.

Mal sabiam todos que na verdade os tais problemas técnicos eram uma pessoa que, na estação anterior, tinha se jogado nos trilhos instantes antes do vagão chegar em alta velocidade para o embarque e o desembarque. Era uma jovem moça que se atirou voluntariamente para a morte. Devido a rapidez com que tudo aconteceu, poucos na estação anterior puderam notar o ocorrido. Mas as câmeras flagraram tudo. Sangue e carne foram compridos pela partição. A imagem em câmera lenta ficou gravada para sempre nos arquivos da companhia administradora do metrô. Ficou gravada também na mente dos operadores das câmeras de segurança. Aquilo não era algo tão raro de acontecer, e a morte cinegrafada causaria danos irreparáveis aos subconscientes dos funcionários.
Poucos minutos depois o metrô voltou a funcionar, e tudo retornou a aparente normalidade cotidiana. Lázaro arranjou um pequeno espaço no fundo do vagão e, assim que possível, sentou-se ao lado da janela. Distraiu-se com a televisão digital alguns metros a frente. Entre uma propaganda e outra, começou a ter uma sensação estranha. Parecia haver uma imagem sobreposta que se repetia continuamente na tela. Era a imagem da jovem se atirando para a morte. Desconfortável, ele pôs-se a mirar nas outras telas, mais distantes. Todas repetiam, cada vez mais nitidamente, a cena fatal. Um sentimento de aflição e de dor passou a ocupar sua mente. Ficou ainda mais intenso quando Lázaro percebeu que era só ele, em todo o vagou, que conseguia ver aquela cena.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A Rotina


Algum tempo passou. As coisas foram se assentando e Lázaro se sentia mais conformado com a sequência trágica dos fatos da vida. Mas ainda andava ele muito ocioso, pois então que seu pai disse:
- Arrume um emprego, ou pelo menos algo para fazer. A vida tem que valer pra alguma coisa, afinal de contas.
Como um bloco imóvel sobre um plano ideal, Lázaro precisou apenas de um empurrão de seu pai para sair da velocidade zero e começar a movimentar-se uniformemente. Com descaso procurou emprego, e foi graças a uns antigos contatos que conseguiu trabalho como arquivista.
Foi trabalhar numa empresa no zona central. Ela ocupava um pequeno prédio, sendo que um andar inteiro servia para guardar as milhares de pastas de arquivo. O salário era pequeno, mas servia para mantê-lo ocupado por quarenta horas semanais. Dona Regina era a encarregada, ela comandava meia dúzia de funcionários. Precisava de pelo menos dois funcionários para dar conta do serviço que, na verdade, seria realizado apenas por Lázaro.
- Lázaro, funciona assim: as pastas chegam todas por esta caixa. As numeradas de 1 à 9999 devem ser arquivadas no setor azul, as de 10000 à 20000 devem ir para o verde, já as brancas, de 20001 pra frente, não devem ser guardadas. Elas devem ser lançadas no computador. Isso porque elas foram feitas quando mudou o sistema. Isso é bom, porque aí você não precisa rubricar as fichas brancas, que já estão amareladas. Ah sim, as verdes e azuis devem ser rubricadas aqui e aqui. As fichas ficam na caixa preta, exceto às de 2000 à 2004. Essas devem ser separadas e catalogadas nesta pasta rosa. É muito importante que as fichas rosas não se misturem com as pastas vermelhas. As vermelhas são catalogadas em ordem numérica, já às rosas são em ordem alfabética ao contrário. Só que as letras “k” “w” “y” ficam no começo, porque antes não estavam no alfabeto quando fizeram a reforma de 2007 no arquivo. Parece um pouco complexo, mas com o tempo você se acostuma. Eu estou aqui há quinze anos e consigo lidar com todos os arquivos, menos os das fichas azuis, que quem cuida é o Sérgio. Deu pra ter uma noção de como funciona?
Lázaro fez que sim com a cabeça, apesar de não entender nada. Ele estava mais preocupado em saber como iria aguentar o forte perfume que a Dona Regina estava usando. Ela era uma senhora de meia idade que carregava na maquiagem, cobria seu corpo redondo com uma roupa justa de um vermelho forte. Com a parede branca atrás de Dona Regina, Lázaro imaginou estar em frente a uma enorme bandeira do Japão.
Após alguns dias de trabalho, Lázaro percebeu o quanto era tranquilo o seu trabalho. Embora o sistema de arquivo de pastas não fizesse o menor sentido, precisa apenas deixar duas dúzias de pastas brancas separadas, pois somente elas eram solicitadas. Qualquer pasta, colorida ou branca, ficava a cargo de Sérgio, um rapaz miúdo e de óculos, que costumava sumir por horas entre as prateleiras de pastas do arquivo.
Lázaro só estava curioso em saber sobre a empresa em que passou a trabalhar. Chegou a perguntar duas ou três vezes à Dona Regina. Esta desconversava, falava que estava muito ocupada e que depois explicaria com todos os detalhes o que fazia a companhia. Alguns dias depois de começar no emprego, quando recebeu a carteira de trabalho de volta, ele viu somente o nome “K.W.Y. & Cia. Ltda.” carimbado no documento, sem maiores detalhes. Não poderia ser mais frustrante.

* * *

Com o trabalho, Lázaro conseguira ocupar sua mente durante o horário comercial. No intervalo do almoço ficava tão esfomeado que não conseguia formular pensamentos mais complexos. No começo chegava em casa cansado, comia alguma coisa e ia dormir, não sonhava. Mas com o tempo a rotina foi se formando. O trabalho já estava mecânico, o almoço sem gosto, e as noites voltaram a demorar a passar. Ficava horas no computador, até cansar. Quando ia dormir, muitas vezes já no meio da madrugada, tinha dificuldade em pegar no sono.
Várias vezes ele teve sonho longos e confusos. Neles por vezes se encontrava com sua namorada em paisagens idílicas, outras tantas vezes voava velozmente viajando através de campos, mares e florestas. Era como se sonhasse ser uma espécie de super-heroi. Também conversava com muitos conhecidos e desconhecidos em seus sonhos. Sentava junto deles embaixo de ciprestes e salgueiros. Teciam comentários sobre as coisas corriqueiras da vida. Mas com sua namorada mantinha conversas longas e profundas. Falavam sobre tudo, sempre com uma forte carga filosófica.
Com o tempo, Lázaro percebeu que ela frequentemente comentava sobre as coisas que aconteceram após seu próprio falecimento, na época do acidente de Lázaro. E com o passar do tempo ela pareceu cada vez mais angustiada e mais distante, até que um dia Lázaro não mais a encontrou em seus sonhos.
Passou a procurá-la velozmente, voando pelas paisagens oníricas. Nenhum de seus amigos de sonho sabia do paradeiro da moça, nem mesmo o Velho Owney, apresentado no primeiro episódio de rapsódia de Lázaro.
Certa vez, Sérgio, o arquivista, percebeu o olhar angustiado de Sérgio e perguntou:
- O que foi Lázaro?
- Nada, nada não.
- Que isso, cara. Pode falar pra mim.
- É que... eu acho que preciso ir num psicólogo. To tendo uns sonhos estranhos.
- Psicólogo? Que psicólogo, cara?! Isso aí não dá certo não. Mas eu conheço um cara que pode te ajudar. Ele manja tudo de sonho, de sonhos estranhos principalmente. E não é nada de terreiro ou de igreja. Ele manja mesmo, vou te levar lá.
Relutante, Lázaro foi ter com conhecido de Sérgio.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Escrever, mas escrever mesmo

  • "Publicamos para não passar a vida a corrigir rascunhos. Quer dizer, a gente publica um livro para livrar-se dele." - O pensamento vivo de Jorge Luis Borges

Ando pensando sobre a dificuldade de escrever. Fazer pequenos textos até que é fácil (como este, por exemplo). Assim curto não dá muito trabalho. Não leva mais do que uns 15 minutos pra ficar pronto e acabado. Agora escrever algo mais longo, estilo romance mesmo, é bem tenso.

Na verdade já tentei escrever coisas mais longas. Projetos fabulosos que se transformaram em fracassos lastimáveis. Eu simplesmente não consegui continuar. Comecei com fôlego e perdi aos poucos o interesse. Tive vários "falsos começos", o que gerou um pouco de frustração de minha parte. Sinto que desperdicei boas ideias, no fim das contas.

Acho que isso tem um pouco a ver com a internet, ou melhor, com essa tal de Era da Informação em que vivemos. Nela as coisas são diretas, rápidas, sem rodeios. Queremos o conteúdo completo, de uma vez - meio Matrix sabe? Não há espaço pra reflexão, pra se fazer coisas trabalhosas, coisas duradouras. Pra que encarar um Tolstoi se podemos saber tudo dele resumido e diagramado na net. Talvez seja por isso que não consigo escrever da forma que quero, trabalhando em textos longos e de vida própria.

Acho que o jeito é eu me infurnar numa cabana no meio da floresta até que saia um romance completo - capa a capa. Vou encarnar um isolamento meio contemplativo como Thoreau, meio existencial como Heidegger, que sabe dê certo...


Obs.: agradeço de coração todos que vem comentando aqui, eles me estimulam a continuar escrevendo.

terça-feira, 27 de abril de 2010

O despertar

Viajava Lázaro pela rodovia quando o celular começou a tocar insistentemente. Não podia atendê-lo. Estava com pressa e atender o telefone enquanto guiava em alta velocidade não era a coisa mais segura a fazer. No entanto, depois da quarta ou quinta vez que tocava, irritado Lázaro pegou seu aparelho, viu que era seu velho amigo quem ligava e atendeu:
- Fala.
- Lázaro, liguei pra te dizer, sua namorada sofreu um acidente e... e não sobreviveu.
De repente Lázaro ficou catatônico.
- Lázaro?! Lázaro, você 'taí?
Lázaro travou o volante nas mãos fazendo com que o carro não acompanhasse o contorno da curva. O veículo cruzou subitamente a faixa contínua e bateu de frente com um caminhão que vinha no sentido oposto.
- Lázaro?! Você tá me ouvindo? Lázaro?!


* * *

De repente, tudo mudou. Tudo virou do avesso e nada mais estava definido na vida dele. O calor era intenso. O sol brilhava forte, tão forte que os olhos do rapaz não conseguiam se abrir. Instintivamente procurou uma sombra, ainda deitado. Não havia sombra. Lázaro estava num enorme e ondulado descampado. Estava deitado sobre uma grama extremamente verde e homogênea. Sentou-se. Pode ver então que o gramado se extendia por centenas de metros, em todas as direções. Pode notar, há alguns metros, uma comprida e estreita faixa cinzenta pela qual
passavam velozmente algumas formigas. Levantou-se e caminhou para perto da faixa. O sol, que antes impedia uma visão mais elevado começou a ser encoberto por algumas nuvens escuras. Em alguns poucos segundos o calor forte e seco deu lugar a uma brisa fresca e úmida. Relâmpagos estoraram no céu, e Lázaro viu que a faixa cinza no chão estava ficando cada vez mais larga. A fina grama também começou a crescer velozmente. Quando Lázaro se deu por si, Lázaro estava no meio de um canavial, cujos ramos passavam de dois metros de altura. Tentando focalizar sua
atenção, ele seguiu por uma trilha entre as canas, sempre na direção daquela faixa cinzenta. Depois de poucos minutos caminhando cautelosamente, ele chegou a beira de uma movimentada rodovia. Ao invés de carros, nela travegavam insetos gigantescos. Assustado, se escondeu atrás de um barranco. Mas logo começou a chover e o lugar começou a encher d'água. Sem ter para onde ir, o rapaz subiu o barranco e se aproximou da estrada.
De repente um inseto parecido com uma barata gigante parou próximo. Em cima dele estava um homem velho e maltrapilho, segurando os arreios do monstro. que logo perguntou:
- Quer uma carona?
Lázaro, sem saber o que dizer, foi pra perto da barata gigante. O inseto deitou-se no acostamento e permitiu que Lázaro subisse em seu lombo. Com uma certa dificuldade, ele conseguiu se sentar ao lado do velho, que novamente falou:
- Para onde vai, meu jovem?
Lázaro tem balbuciar, mas estava tão desorientado que não pode concatenar seus pensamentos.
- Eu, eu... para...
- Eu vou para o Quinto Horizonte - interrompeu o velho barbudo -, se quiser, te deixo por lá?
Lázaro somente memeou com a cabeça, pois sabia que não tinha uma resposta coerente a dar ao velho, e sabia que o velho era a coisa mais familiar e estável que viu nos últimos minutos.
A barata levantou-se e voltou a estrada. Em pouco tempo ganhou velocidade. Incomodado com o silêncio o velho disse:
- Eu sou Owney. E você, como chama?
- Lázaro - respondeu de forma involuntariamente seca.
- Lázaro, eu fico preocupado sempre que vejo alguém perdido por aqui. Dou carona porque sei que neste mundo não existe um manual de instruções. Pode ser muito perigoso viajar só e a pé, principalmente para alguém perdido como você.
Antes que Lázaro pudesse formular alguma questão, o Velho Owney sacudiu os arreios e bateu os calcanhares na criatura que, respondendo ao comando aumentou mais ainda a velocidade e começou a bater suas asas duplas. Mesmo no meio da chuva ganhou altura rapidamente e sumiu por entre as nuvens negras.
Cruzaram as nuvens numa velocidade estonteante. Por entre as brumas surgiu uma metrópole onírica. Nela arranhacéus flutuavam em diferentes alturas. O solo e as ruas eram apenas uma suposição sob a névoa branca. O inseto pousou gentilmente sobre uma plataforma de paralelepípedos. No local, centenas de pessoas caminhavam lentamente, como se estivessem num passeio de domingo na praça. Havia crianças correndo, casais de jovens e de idosos caminhando sem pressa.
- Será bom você ficar um pouco aqui - disse o Velho Owney.
Lázaro desceu do lombo do inseto, ficando parado no meio da multidão, olhando lentamente em contido espanto. Havia dez mil pessoas, talvez mais. Seus lábios se moviam mas não falavam. Era o som do silêncio. Os rostos na multidão pareciam estranhamente familiares. Lázaro via antigos amigos do colégio, garotas com roupas rebeldes, seus avós andando de chapéu coco, até mesmo o velho cachorro que tinha em sua primeira infância.
Na multidão dois homens usando jaleco médico conversar analiticamente:
- Veja bem - argumentou o primeiro - se eu continuo insistindo, vou parecer que estou desesperado. Não quero isso.
- Mas se você não se expor, ela não vai notar. Elas nunca, digo, quase nunca agem primeiro - contestou o outros médico. Quem sabe seria melhor você fazer algo.
- Mas ela faz de propósito. E eu já estou velho pra esse tipo de coisa e...
- Parece que há alguma reação - interrompeu o segundo.
- Como assim? Dela?
- Não, dele - o médico ficou sério de repente -, do paciente.
Lázaro sentiu-se tragado por um turbilhão. Sentiu enjoado e atordoado. Havia uma claridade tão intensa que não conseguia ele abrir os olhos. Aos poucos, foi abrindo-os. Ainda nublada, sua visão conseguia apenas identificar dois vultos. Provavelmente dois médicos. Lázaro estava deitado na cama de um hospital. Acabava de ter sido despertado de um coma.

* * *

Certo dia Lázaro se recuperou. Voltou para casa e, assim que pode, foi para o cemitério. Era um daqueles cemitérios repletos de jazigos opulentos e desproporcionais, cuja mistura de acabamentos e de estilos dava ao lugar um ar caótico e humano. Chovia muito na primeira vez que ele foi visitar o túmulo de sua namorada.
Ele ficou eternos minutos olhando fixamente para a tumba. Seu guarda-chuva negro lhe forçava a permanecer em equilíbrio. Tudo mudara. Não mais seria o mesmo. Era como se tivesse despertado de um sonho. Os anjos de mármore da tumba vizinha se comoveram com o olhar perdido e desolado de Lázaro. Algumas gotas pareciam lacrimejar do mármore angelical.

domingo, 25 de abril de 2010

Só pra dar uma de culto

POLIGLOTENIA

Qualquer dia desses
There'll be a change
On va voir de tout
Ihre weißen Hände.

Seine Hände nicht schütteln
Quand je vous trouver
And our eyes will shine
Ao amanhecer.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Invictus



Não é fácil fugir da superficialidade do cinema americano. Embora recorra à diversos clichês no roteiro,"Invictus", de Clint Eastwood, tem seus méritos.

A história remonta o mundial de rugby de 1995, na África do Sul, recém saída do terrível regime do Apartheid. Na trama, Nelson Mandela (Morgan Freeman) tenta unir a nação através do rugby, esporte praticado tradicionalmente pelos sul-africanos brancos. Ele encontra uma série de dificuldades, mas, aos poucos, vai conquistando a confiança de brancos e negros.

Na verdade, o grande mérito desse filme é o cenário. Destaque para o cuidado com a utilização das expressões e dos idiomas locais (em xhosa, em afrikaans e até em inglês), além da representação dos diversos cenários do país.

Pode haver uma certa sensação de estranheza ao ver o filme, a qual pode estar relacionada com a própria expressão cultural da África do Sul. Por trás do aparente espírito alegre (divulgado inclusive para a Copa do Mundo de Futebol deste ano), existe um forte rancor entalado na garganta dos sul-africanos negros. A expressão política e a unidade cultural do país não é forte.

Em 2002/2003, quando tive a oportunidade de morar lá, pude ver que esse sentimento de segregação ainda não estava superado. Apesar de ser hoje um país democrático, existem lá pelo menos dois mundos: um dos brancos e um dos negros. Com raras exceções, eles não se misturam. As diferentes etnias (pelo menos 13 grandes) têm dificuldade de se integrar. Enquanto os povos nativos são separados regional e linguisticamente, os brancos - principalmente os boeres (descendentes de alguns povos germânicos do centro da Europa) - são ainda odiados pelos negros. A questão racial lá é tão delicada que transformam em querelas as discussões brasileiras sobre racismo. Pra se ter uma ideia da separação étnica do país, mesmo após duzentos anos de colonização, na virada para o século XXI, apenas 8% da população era mestiça. E lá, os mestiços (ou coloured) são considerados uma etnia a parte.

Segue abaixo trailer do filme.

terça-feira, 23 de março de 2010

Nardoni e as novidades antigas

- Public opinion is no more than this: What people think that other people think.
- Prince Lucifer [a play].: [a Play].‎ - Página 189, de Alfred Austin

A mídia está em transe. O maior crime de todos os tempos está em julgamento: o assassinato de Isabela Nardoni por, supostamente, pai e madrasta. O fato é que a opinião pública JÁ CONDENOU o casal. Na verdade, quem está sob julgamento são os sete jurados: se eles não condenarem o casal Nardoni, serão taxados de cruéis insensíveis cúmplices devoradores de criancinhas. Mas é óbvio que condenarão os réus, afinal, quem teria coragem de ir contra a opinião pública?

segunda-feira, 15 de março de 2010

Paradigmas e paradoxos

"If we don't change, we don't grow. If we don't grow, we are not really living."
- Passages: predictable crises of adult life‎ - Gail Sheehy


Fiquei um bom tempo sem escrever nada aqui. Na verdade até tentei, semanas atrás, postar um comentário sobre a política do governo federal que incentiva o comércio de motos, levando a aumentar as mortes nas estradas, obviamente.

Mas hoje escrevo por motivos diferentes. Estou vivendo uma fase de mudanças: mudança de emprego; de cidade; de círculo de amigos; de perspectivas quanto ao futuro; mudanças na Fórmula 1; e até de tempo. Finalmente o tempo está ficando um pouco mais ameno. Não que não haja mais calor, mas hoje o vento mudou, vem do sul agora.

Quanto às outras mudanças, não sei se vão ser boas. Só sei que são mudanças. Aos poucos vem acontecendo uma grande mudança de paradigma.

Bom, vou tentar preservar as coisas boas antigas e encarar como naturais as coisas novas.