quarta-feira, 19 de maio de 2010

A Rotina


Algum tempo passou. As coisas foram se assentando e Lázaro se sentia mais conformado com a sequência trágica dos fatos da vida. Mas ainda andava ele muito ocioso, pois então que seu pai disse:
- Arrume um emprego, ou pelo menos algo para fazer. A vida tem que valer pra alguma coisa, afinal de contas.
Como um bloco imóvel sobre um plano ideal, Lázaro precisou apenas de um empurrão de seu pai para sair da velocidade zero e começar a movimentar-se uniformemente. Com descaso procurou emprego, e foi graças a uns antigos contatos que conseguiu trabalho como arquivista.
Foi trabalhar numa empresa no zona central. Ela ocupava um pequeno prédio, sendo que um andar inteiro servia para guardar as milhares de pastas de arquivo. O salário era pequeno, mas servia para mantê-lo ocupado por quarenta horas semanais. Dona Regina era a encarregada, ela comandava meia dúzia de funcionários. Precisava de pelo menos dois funcionários para dar conta do serviço que, na verdade, seria realizado apenas por Lázaro.
- Lázaro, funciona assim: as pastas chegam todas por esta caixa. As numeradas de 1 à 9999 devem ser arquivadas no setor azul, as de 10000 à 20000 devem ir para o verde, já as brancas, de 20001 pra frente, não devem ser guardadas. Elas devem ser lançadas no computador. Isso porque elas foram feitas quando mudou o sistema. Isso é bom, porque aí você não precisa rubricar as fichas brancas, que já estão amareladas. Ah sim, as verdes e azuis devem ser rubricadas aqui e aqui. As fichas ficam na caixa preta, exceto às de 2000 à 2004. Essas devem ser separadas e catalogadas nesta pasta rosa. É muito importante que as fichas rosas não se misturem com as pastas vermelhas. As vermelhas são catalogadas em ordem numérica, já às rosas são em ordem alfabética ao contrário. Só que as letras “k” “w” “y” ficam no começo, porque antes não estavam no alfabeto quando fizeram a reforma de 2007 no arquivo. Parece um pouco complexo, mas com o tempo você se acostuma. Eu estou aqui há quinze anos e consigo lidar com todos os arquivos, menos os das fichas azuis, que quem cuida é o Sérgio. Deu pra ter uma noção de como funciona?
Lázaro fez que sim com a cabeça, apesar de não entender nada. Ele estava mais preocupado em saber como iria aguentar o forte perfume que a Dona Regina estava usando. Ela era uma senhora de meia idade que carregava na maquiagem, cobria seu corpo redondo com uma roupa justa de um vermelho forte. Com a parede branca atrás de Dona Regina, Lázaro imaginou estar em frente a uma enorme bandeira do Japão.
Após alguns dias de trabalho, Lázaro percebeu o quanto era tranquilo o seu trabalho. Embora o sistema de arquivo de pastas não fizesse o menor sentido, precisa apenas deixar duas dúzias de pastas brancas separadas, pois somente elas eram solicitadas. Qualquer pasta, colorida ou branca, ficava a cargo de Sérgio, um rapaz miúdo e de óculos, que costumava sumir por horas entre as prateleiras de pastas do arquivo.
Lázaro só estava curioso em saber sobre a empresa em que passou a trabalhar. Chegou a perguntar duas ou três vezes à Dona Regina. Esta desconversava, falava que estava muito ocupada e que depois explicaria com todos os detalhes o que fazia a companhia. Alguns dias depois de começar no emprego, quando recebeu a carteira de trabalho de volta, ele viu somente o nome “K.W.Y. & Cia. Ltda.” carimbado no documento, sem maiores detalhes. Não poderia ser mais frustrante.

* * *

Com o trabalho, Lázaro conseguira ocupar sua mente durante o horário comercial. No intervalo do almoço ficava tão esfomeado que não conseguia formular pensamentos mais complexos. No começo chegava em casa cansado, comia alguma coisa e ia dormir, não sonhava. Mas com o tempo a rotina foi se formando. O trabalho já estava mecânico, o almoço sem gosto, e as noites voltaram a demorar a passar. Ficava horas no computador, até cansar. Quando ia dormir, muitas vezes já no meio da madrugada, tinha dificuldade em pegar no sono.
Várias vezes ele teve sonho longos e confusos. Neles por vezes se encontrava com sua namorada em paisagens idílicas, outras tantas vezes voava velozmente viajando através de campos, mares e florestas. Era como se sonhasse ser uma espécie de super-heroi. Também conversava com muitos conhecidos e desconhecidos em seus sonhos. Sentava junto deles embaixo de ciprestes e salgueiros. Teciam comentários sobre as coisas corriqueiras da vida. Mas com sua namorada mantinha conversas longas e profundas. Falavam sobre tudo, sempre com uma forte carga filosófica.
Com o tempo, Lázaro percebeu que ela frequentemente comentava sobre as coisas que aconteceram após seu próprio falecimento, na época do acidente de Lázaro. E com o passar do tempo ela pareceu cada vez mais angustiada e mais distante, até que um dia Lázaro não mais a encontrou em seus sonhos.
Passou a procurá-la velozmente, voando pelas paisagens oníricas. Nenhum de seus amigos de sonho sabia do paradeiro da moça, nem mesmo o Velho Owney, apresentado no primeiro episódio de rapsódia de Lázaro.
Certa vez, Sérgio, o arquivista, percebeu o olhar angustiado de Sérgio e perguntou:
- O que foi Lázaro?
- Nada, nada não.
- Que isso, cara. Pode falar pra mim.
- É que... eu acho que preciso ir num psicólogo. To tendo uns sonhos estranhos.
- Psicólogo? Que psicólogo, cara?! Isso aí não dá certo não. Mas eu conheço um cara que pode te ajudar. Ele manja tudo de sonho, de sonhos estranhos principalmente. E não é nada de terreiro ou de igreja. Ele manja mesmo, vou te levar lá.
Relutante, Lázaro foi ter com conhecido de Sérgio.

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