terça-feira, 27 de abril de 2010

O despertar

Viajava Lázaro pela rodovia quando o celular começou a tocar insistentemente. Não podia atendê-lo. Estava com pressa e atender o telefone enquanto guiava em alta velocidade não era a coisa mais segura a fazer. No entanto, depois da quarta ou quinta vez que tocava, irritado Lázaro pegou seu aparelho, viu que era seu velho amigo quem ligava e atendeu:
- Fala.
- Lázaro, liguei pra te dizer, sua namorada sofreu um acidente e... e não sobreviveu.
De repente Lázaro ficou catatônico.
- Lázaro?! Lázaro, você 'taí?
Lázaro travou o volante nas mãos fazendo com que o carro não acompanhasse o contorno da curva. O veículo cruzou subitamente a faixa contínua e bateu de frente com um caminhão que vinha no sentido oposto.
- Lázaro?! Você tá me ouvindo? Lázaro?!


* * *

De repente, tudo mudou. Tudo virou do avesso e nada mais estava definido na vida dele. O calor era intenso. O sol brilhava forte, tão forte que os olhos do rapaz não conseguiam se abrir. Instintivamente procurou uma sombra, ainda deitado. Não havia sombra. Lázaro estava num enorme e ondulado descampado. Estava deitado sobre uma grama extremamente verde e homogênea. Sentou-se. Pode ver então que o gramado se extendia por centenas de metros, em todas as direções. Pode notar, há alguns metros, uma comprida e estreita faixa cinzenta pela qual
passavam velozmente algumas formigas. Levantou-se e caminhou para perto da faixa. O sol, que antes impedia uma visão mais elevado começou a ser encoberto por algumas nuvens escuras. Em alguns poucos segundos o calor forte e seco deu lugar a uma brisa fresca e úmida. Relâmpagos estoraram no céu, e Lázaro viu que a faixa cinza no chão estava ficando cada vez mais larga. A fina grama também começou a crescer velozmente. Quando Lázaro se deu por si, Lázaro estava no meio de um canavial, cujos ramos passavam de dois metros de altura. Tentando focalizar sua
atenção, ele seguiu por uma trilha entre as canas, sempre na direção daquela faixa cinzenta. Depois de poucos minutos caminhando cautelosamente, ele chegou a beira de uma movimentada rodovia. Ao invés de carros, nela travegavam insetos gigantescos. Assustado, se escondeu atrás de um barranco. Mas logo começou a chover e o lugar começou a encher d'água. Sem ter para onde ir, o rapaz subiu o barranco e se aproximou da estrada.
De repente um inseto parecido com uma barata gigante parou próximo. Em cima dele estava um homem velho e maltrapilho, segurando os arreios do monstro. que logo perguntou:
- Quer uma carona?
Lázaro, sem saber o que dizer, foi pra perto da barata gigante. O inseto deitou-se no acostamento e permitiu que Lázaro subisse em seu lombo. Com uma certa dificuldade, ele conseguiu se sentar ao lado do velho, que novamente falou:
- Para onde vai, meu jovem?
Lázaro tem balbuciar, mas estava tão desorientado que não pode concatenar seus pensamentos.
- Eu, eu... para...
- Eu vou para o Quinto Horizonte - interrompeu o velho barbudo -, se quiser, te deixo por lá?
Lázaro somente memeou com a cabeça, pois sabia que não tinha uma resposta coerente a dar ao velho, e sabia que o velho era a coisa mais familiar e estável que viu nos últimos minutos.
A barata levantou-se e voltou a estrada. Em pouco tempo ganhou velocidade. Incomodado com o silêncio o velho disse:
- Eu sou Owney. E você, como chama?
- Lázaro - respondeu de forma involuntariamente seca.
- Lázaro, eu fico preocupado sempre que vejo alguém perdido por aqui. Dou carona porque sei que neste mundo não existe um manual de instruções. Pode ser muito perigoso viajar só e a pé, principalmente para alguém perdido como você.
Antes que Lázaro pudesse formular alguma questão, o Velho Owney sacudiu os arreios e bateu os calcanhares na criatura que, respondendo ao comando aumentou mais ainda a velocidade e começou a bater suas asas duplas. Mesmo no meio da chuva ganhou altura rapidamente e sumiu por entre as nuvens negras.
Cruzaram as nuvens numa velocidade estonteante. Por entre as brumas surgiu uma metrópole onírica. Nela arranhacéus flutuavam em diferentes alturas. O solo e as ruas eram apenas uma suposição sob a névoa branca. O inseto pousou gentilmente sobre uma plataforma de paralelepípedos. No local, centenas de pessoas caminhavam lentamente, como se estivessem num passeio de domingo na praça. Havia crianças correndo, casais de jovens e de idosos caminhando sem pressa.
- Será bom você ficar um pouco aqui - disse o Velho Owney.
Lázaro desceu do lombo do inseto, ficando parado no meio da multidão, olhando lentamente em contido espanto. Havia dez mil pessoas, talvez mais. Seus lábios se moviam mas não falavam. Era o som do silêncio. Os rostos na multidão pareciam estranhamente familiares. Lázaro via antigos amigos do colégio, garotas com roupas rebeldes, seus avós andando de chapéu coco, até mesmo o velho cachorro que tinha em sua primeira infância.
Na multidão dois homens usando jaleco médico conversar analiticamente:
- Veja bem - argumentou o primeiro - se eu continuo insistindo, vou parecer que estou desesperado. Não quero isso.
- Mas se você não se expor, ela não vai notar. Elas nunca, digo, quase nunca agem primeiro - contestou o outros médico. Quem sabe seria melhor você fazer algo.
- Mas ela faz de propósito. E eu já estou velho pra esse tipo de coisa e...
- Parece que há alguma reação - interrompeu o segundo.
- Como assim? Dela?
- Não, dele - o médico ficou sério de repente -, do paciente.
Lázaro sentiu-se tragado por um turbilhão. Sentiu enjoado e atordoado. Havia uma claridade tão intensa que não conseguia ele abrir os olhos. Aos poucos, foi abrindo-os. Ainda nublada, sua visão conseguia apenas identificar dois vultos. Provavelmente dois médicos. Lázaro estava deitado na cama de um hospital. Acabava de ter sido despertado de um coma.

* * *

Certo dia Lázaro se recuperou. Voltou para casa e, assim que pode, foi para o cemitério. Era um daqueles cemitérios repletos de jazigos opulentos e desproporcionais, cuja mistura de acabamentos e de estilos dava ao lugar um ar caótico e humano. Chovia muito na primeira vez que ele foi visitar o túmulo de sua namorada.
Ele ficou eternos minutos olhando fixamente para a tumba. Seu guarda-chuva negro lhe forçava a permanecer em equilíbrio. Tudo mudara. Não mais seria o mesmo. Era como se tivesse despertado de um sonho. Os anjos de mármore da tumba vizinha se comoveram com o olhar perdido e desolado de Lázaro. Algumas gotas pareciam lacrimejar do mármore angelical.

2 comentários:

Thá Queiroz disse...

essa história não tem nada de absurda. adorei!

Luis Gustavo Cardoso disse...

Meu velho, muito bom mesmo. Parabéns e um abração!!